3 de mar. de 2007

Superpensão ou superviolação de direitos?

“Supersalários” e “superpensões” são os termos usados pela mídia para designar salários e pensões de servidores públicos que ultrapassem os tetos estabelecidos pela Emenda Constitucional 41/2003.

São termos obviamente carregados de conteúdo pejorativo, transmitido a idéia de que são abusivos, imorais ou ilegais. Evocam um sentimento de reprovação, em face da comparação que é feita com os salários e pensões mais comuns, muitas vezes menores do que esses.

Uma vez que uma parte dos que gozam desses salários são políticos, desembargadores e outras figuras de autoridade, a natural desconfiança em relação aos abusos que podem ser cometidos por elas carrega os termos com a idéia de privilégios.

Mas, como todo preconceito, isso não condiz com a realidade na maioria dos casos. Com efeito, a maioria dos que recebem salários altos não são nem políticos nem magistrados, mas funcionários comuns, sem o poder de estabelecer seus próprios salários e sujeitos à legislação comum que afeta a todos os demais servidores.

Ou seja, não é fruto de abusos, mas da aplicação da lei.

Da mesma forma, as pensões não são injustas, já que por décadas, cada um desses servidores contribuiu com a previdência com uma porcentagem de seu salário integral, e não de um teto, como os trabalhadores privados.

Pagaram por suas pensões agora chamadas “milionárias”, com contribuições igualmente “milionárias”.

O argumento contra esses salários e pensões é simples: eles são maiores do que os da maioria da população, e como são pagos pelos impostos, são injustos, pois “incompatíveis”, abusivos e imorais, e devem ser reduzidos em nome de uma “solidariedade social”.

O critério que determina um salário justo apenas para os servidores públicos deixa de ser o merecimento individual, e passa a ser uma suposta “compatibilidade” com os demais salários pagos na sociedade. Da mesma forma, o conceito de pensão justa deixa de ser a quantia contribuída por décadas e passa a ser essa mesma “compatibilidade”.

Da mesma forma, ao propor a redução desses salários e pensões, deixa-se de lado a proteção aos direitos adquiridos. De fato, os funcionários públicos passam a ser cidadãos de segunda classe, para os quais o direito a um salário e a uma pensão passa a ser variável ao sabor do que determinam o que é “compatível” ou não.

Finalmente, é estabelecida uma “solidariedade social compulsória” a esses servidores. Ser solidário é uma opção individual para qualquer pessoa, mas para os funcionários públicos passa a ser uma obrigação. Sem serem consultados, devem ter seus salários e pensões reduzidos em favor da sociedade.

Caso esse princípio fosse aplicado à sociedade em geral, especialmente aos mais ricos, estaríamos no meio de uma guerra civil neste momento. Mas parece que os “formadores de opinião” não se importam se as vítimas dos abusos são servidores públicos.

Argumentam os defensores do teto salarial que não existe direito adquirido aos salários ou às pensões, para os que já se encontravam aposentados quando da edição da Emenda 41/2003.
Ora, isso é uma imensa falácia. Na verdade, a própria emenda assume o contrário ao se referir ao art. 17 dos Atos das disposições constitucionais transitórias, que diz:

"Os vencimentos, a remuneração, as vantagens e os adicionais, bem como os proventos de aposentadoria que estejam sendo percebidos em desacordo com a Constituição serão imediatamente reduzidos aos limites dela decorrentes, não se admitindo, neste caso, invocação de direito adquirido ou percepção de excesso a qualquer título."

Está explícito que se trata de uma redução de um direito adquirido, tanto que se proíbe, ilegalmente diga-se de passagem, a utilização desse direito individual para se opor à redução. A ilegalidade é óbvia, uma vez que o art. 17 acima referido exauriu-se quando da promulgação da Constituição Federal, fruto do poder Constituinte Originário, e não pode ser reutilizado pelo poder Constituinte Derivado.

Mais, trata-se de uma afronta aos direitos e garantias individuais estabelecidos na Constituição por uma via que expõe todos os demais direitos e garantias.

O art. 5º da Constituição enumera tais direitos e garantias. Entre eles, encontra-se a proteção aos direitos adquiridos, ao ato jurídico perfeito e à coisa julgada.

E diz o art. 60 da Constituição:

"§ 4º - Não será objeto de deliberação a proposta de emenda tendente a abolir:

(...)

IV - os direitos e garantias individuais."

Assim, uma emenda que tenda a abolir (e limitar é tender a abolir) um direito e garantia individual, como a proteção aos direitos adquiridos, não pode sequer ser objeto de deliberação, e é inconstitucional.

Para justificar a violação do art. 60 acima, os defensores da redução dos salários e pensões valem-se de dois argumentos, a saber:

1) A proibição não pode proteger direitos que causam prejuízos ao erário e os detentores desses direitos não podem esperar que eles sejam mantidos eternamente e

2) A proteção aos direitos adquiridos, quando relativa a emendas constitucionais, diz respeito a “direitos adquiridos de ordem constitucional” e, assim, direitos adquiridos comuns são vulneráveis a emendas.

O primeiro argumento equivale a negar que a proibição constitucional possa ficar no caminho do julgador e do legislador, uma verdadeira afronta à ordem constitucional e ao Estado de Direito. E o pior é que tal ponto de vista é esposado por alguns Ministros do STF, que deveriam zelar pela execução fiel da Constituição, em vez de erodi-la desse jeito.

O segundo argumento não fica muito atrás. Além de criar uma nova classe de direitos adquiridos com a única finalidade de deixar todos aqueles cujos direitos não estejam diretamente estabelecidos na Constituição (como o da irredutibilidade de vencimentos dos Magistrados, por exemplo) vulneráveis ao poder Constitucional derivado.

E, analogamente, esse mesmo raciocínio deve ser aplicado aos atos jurídicos perfeitos e à coisa julgada, resultando na quebra total da segurança jurídica.

Essa violação, portanto, não afeta apenas os funcionários públicos, mas toda a sociedade, e é muito mais grave do que uma mera reformulação de salários.

Trata-se, como demonstrado, de uma violação de direitos e garantias individuais completamente arbitrária, quando os direitos já adquiridos são considerados. Aos que acreditam que a vontade da maioria justifica essa violência contra a minoria peço que se lembrem de outra instância onde os direitos individuais de uma minoria foi atacado pela vontade da maioria, na Alemanha, nas décadas de 30 e 40.

Não há nenhuma diferença entre o que foi feito então e o que foi feito recentemente. Até as justificativas são as mesmas: imoralidade, critérios completamente arbitrários, etc.

Por fim, é inegável que existe uma disparidade entre os salários e pensões. Isso não significa que alguns são altos demais, mas sim que alguns são baixos demais. Reduzir alguns, além de ser imoral, injusto, ilegal e violento, é contraproducente. Ninguém se beneficia disso, mas muitos de prejudicam.

Em comparação, lutar pelo aumento dos salários e pensões baixos beneficia a todos.

Mas a imprensa não deseja isso. Ao contrário, mantêm todos preocupados com a redução de salários, em vez de discutir o aumento geral. Preferem que todos se preocupem em deixar a todos em uma situação ruim, do que em melhorar as condições de todos.

E tudo isso aproveitando para atacar o Estado, através dos servidores públicos, como sempre fizeram, sempre em busca do ideal neoliberal do Estado mínimo, privatizado, desregulador. Para isso não têm o menor escrúpulo em falsear informações, escondê-las ou simplesmente inventá-las, convencendo o leitor a odiar.

Imagino que o mesmo deva ter ocorrido com a imprensa da Alemanha, na época referida acima. E com igual sucesso.

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